Por Adelto Gonçalves
Algum mistério insondável tem condenado ao esquecimento quase toda a obra de Afonso Schmidt (1890-1964), o grande escritor brasileiro nascido ao pé da Serra do Mar, em Cubatão. Com exceção dos romances Colônia Cecília e A Marcha, ambos reeditados no começo dos anos 1980 pela Brasiliense, de São Paulo, as demais obras de Schmidt, com muita sorte e esforço, só podem ser encontradas em alfarrábios, quase sempre nas edições populares, mas bem cuidadas, do Clube do Livro dos anos 1950 e 1960. Naturalmente, as obras de poesia (edição definitiva de 1946) e de teatro, bem como algumas novelas, contos e livros de viagem, são acessíveis em grandes bibliotecas como a Mário de Andrade, em São Paulo.
Há livros como Menino Felipe, A Vida de Paulo Eiró e Zanzalá que merecem sair do olvido a que foram entregues pela insensibilidade dos editores. Bem como Colônia Cecília, que conta a história da mais importante experiência social realizada em terras brasileiras. Experiência, por sinal, levada a efeito no Paraná de 1889 a 1894, num período de transição entre a Monarquia e a República.
Os anarquistas gostam de lembrar que essa experiência libertária – que, entre outros objetivos, abolia a propriedade privada e instituía o amor livre (sem as amarras do contrato social representado pelo casamento civil) – só foi possível graças ao espírito culto e liberal de dom Pedro II que, ao se encantar com as idéias do italiano Giovani Rossi em Milão, concordou em ceder-lhe terras para a gigantesca e utópica tarefa. Vejam só como é curioso este Brasil – um rei a incentivar idéias igualitárias.
A reforçar a observação dos monarquistas, a História registra a ação nociva e destruidora dos republicanos que, com seu radicalismo jacobino, logo trataram de suprimir as facilidades oferecidas pela Monarquia a Rossi e seus seguidores. Com a mesma fúria insana com que destruíram os casebres de Canudos, imaginando que aqueles maltrapilhos nordestinos ainda estivessem à espera do desejado dom Sebastião e quisessem ressuscitar o regime monárquico e seu simbolismo.
Voltemos a Schmidt. Sua vida bem merecia um livro. Seria uma biografia marcada por episódios curiosos – aventuras a que bem poucos jovens de hoje teriam coragem de se atirar, embora a ausência de perspectivas no Brasil atual seja um enorme estímulo. Nascido de pais brasileiros, o menino Afonso trazia com orgulho o sobrenome de seu bisavô, um alemão que viera ensinar os rudimentos da arte guerreira aos toscos soldados de dom Pedro I. De Cubatão, levado pelos pais, o menino foi morar em São Paulo na Rua Bresser, que ainda hoje está lá no bairro do Brás, quase Pari, em meio a fábricas de chocolates e doces e confecções.
Foi num grupo escolar do Brás que Afonso Schmidt, lá pelos inícios de 1904, teve a primeira experiência nas letras. Como conta Raimundo Menezes em nota explicativa para Tempos das Águas (São Paulo, Clube do Livro, 1962), o menino Afonso ganhou de um colega uma pequena impressora, um trambolho do qual, na verdade, a mãe do outro queria se ver livre.
Nas férias, ao retornar para a casa dos avós, o menino trouxe a pequena tipografia e começou a compor o que poderia ter sido o primeiro periódico de Cubatão. Poderia ter sido porque Afonso acabou não se entendendo com a impressora que teimava em empastelar os tipos. E o destino da pequena tipografia foi a chuva, o sol e o vento num canto do quintal em meio às galinhas naquela Cubatão bucólica, a esse tempo um arrabalde muito distante de Santos. Quem o visse nunca o imaginaria o Vale da Morte em que, ao final do século XX, viria a se transformar com seu rio Mogi envenenado com espumas brancas de detergente, o seu céu plúmbeo de nuvens ácidas e o seu horizonte carregado pela fuligem expulsa das chaminés das indústrias de fertilizantes e iluminado pelo fogo permanente da torre da siderúrgica – retrato perfeito do Apocalipse.
No entanto, em Schmidt aquela impressora haveria de incutir o gosto pelo jornalismo. Logo depois, de volta a São Paulo, juntamente com Oduvaldo Viana, publicou o semanário Zig-Zag. Não tinha ainda 16 anos. Já colaborava com jornais do interior de São Paulo. Por essa época, atraído pelas festas de posse do presidente Afonso Pena, decidiu viajar sozinho para o Rio de Janeiro, então capital da República.
Foi de trem, sem dinheiro. E se virou como pôde. Quando retornou, já vinha mordido pela vontade de viajar e conhecer o mundo. Na segunda-feira do Carnaval de 1907, com 140 mil réis no bolso, voltou para o Rio de Janeiro de comboio e, na quarta-feira, procurou uma agência de vapores e comprou por 60 mil réis um bilhete só de ida para Lisboa pelo cargueiro Berenguer El Grande. Ludibriado pelo caixeiro de um botequim, a quem pedira para tomar conta de sua mala, Schmidt, aos 16 anos, acabou embarcando sem bagagem, sem passaporte e com pouco dinheiro. Levava, porém, muita audácia.
Em Lisboa, alugou fiado um quarto na Baixa e tratou de sobreviver como pôde. Até de seus familiares recebeu dinheiro: o difícil foi provar na casa bancária que era ele mesmo. Afinal, não dispunha de bilhete de identidade nem de passaporte. Mas arrumou-se. Logo começou a ficar cansado da Lisboa ainda provinciana do começo do século.
Pensou em tentar a sorte em Angola, mas de quem pediu conselho só recebeu censura. Resolveu, então, viajar para Paris, de comboio. Depois de alguma dificuldade para atravessar as fronteiras de Espanha e França em razão da ausência de documentos, chegou à Gare de Orléans. Caminhou à toa pela Rive Gauche até encontrar um quartinho sórdido numa travessa do Boulevard Saint Michel. Dias depois, conseguia emprego numa editora que preparava um dicionário francês-português.
Não ganhava muito, mas o pai sempre lhe mandava algum dinheiro pelo banco Crédit Lyonnais. E Schmidt, ainda para economizar, ia partilhar da sopa coletiva que exilados russos privilegiados costumavam patrocinar entre seus patrícios. Mas, por essa época, quando já começava a viver uma vida melhor, a saudade bateu e fê-lo retornar. Estava de volta depois de um ano de vagabundagem pelas ruas de Lisboa e Paris.
Em Santos, dedicou-se ao jornalismo. Partiu para a aventura de fundar um jornal a que chamou de Vésper, como relatou num conto que escreveria anos mais tarde. Fracassada a aventura,, em 1913, retornava a Europa, viajando na terceira classe do vapor Garibaldi. Como da primeira vez, ia com parcos recursos. Desembarcou em Gênova, seguiu de comboio para Milão. E lá conseguiu, depois de ler um jornal, emprego como correspondente em língua portuguesa. Viveu disso durante três meses.
Outra vez desempregado, tratou de escrever cartas para amigos de Santos contando sua situação de penúria. Um deles respondeu e enviou-lhe 50 liras. Com esse dinheiro, tomou o primeiro trem para França. Mas logo ficou sem dinheiro e sem teto sob um frio de 10 graus negativos. Lembrou-se, então, de escrever ao príncipe dom Luís de Bragança e, uma semana depois, recebia 50 francos.
Viajou para Marselha e, no consulado brasileiro, conseguiu de graça uma passagem de volta. Enquanto aguardava o embarque pensou em fazer dinheiro com o bilhete e alistar-se na Legião Estrangeira. Mas acabou recusado porque foi considerado franzino. Foi a sorte. Como conta em seu livro de memórias, Bom Tempo, tão logo desembarcou em Santos, começava a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Por essa época, sua família desfrutava de uma boa situação e morava numa propriedade afastada da civilização, onde hoje está o bairro do Canto do Forte, em Praia Grande, à época área do município de São Vicente, exatamente o mesmo local onde hoje são escritas estas linhas.
Schmidt, porém, logo se cansou dessa paisagem bucólica entre o morro e o mar. Em 1920, retornou ao Rio de Janeiro para trabalhar num jornal de esquerda, A Voz do Povo. Voltou a São Paulo e foi trabalhar na Folha da Noite e, em 1924, em O Estado de S.Paulo, onde permaneceu quase até os seus últimos dias. Foi nesse jornal que publicou em folhetim no suplemento literário alguns de seus principais romances: A Sombra de Júlio Frank, A Marcha e Zanzalá.
Murillo Mello, que conviveu com Afonso Schmidt, lembra-se do escritor como um homem bom, generoso, puro, inteligente, espirituoso, culto e sobretudo modesto. “Sua casa estava sempre pronta para abrigar companheiros perseguidos pela repressão”, recorda. Uma das últimas imagens de Schmidt que Mello registra num artigo publicado no jornal D.O. Leitura, em dezembro de 1990, é a do escritor subindo a Rua Líbero Badaró “tremendamente acabrunhado”. O Brasil vivia o golpe militar de 1964 e o escritor, com certeza, pressentia os dias e noites de terror que viriam. Não ficou, porém, para ver: no dia 3 de abril daquele ano virava história.
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