Crônica de um futuro indesejável.
No dia da apuração, sua mãe me
disse que ele sonhava com dentes. Na realidade, sonhava com suas próprias
cáries. “Ele me disse que pegava o espremedor de alho, não como uma dona de
casa que o fazia enquanto untava o caldeirão, mas como um paciente que esmagava
dente por dente daquele bulbo viçoso, socava-os com palito nos buracos
tridimensionais da arcada dentária, preenchia o oco e aliviava a dor com os
resíduos adstringente do condimento.”
Sua mãe me disse ainda que sempre
curou a dor de dente de seus filhos aplicando alho esmagado nas cáries. Fui
verificar a história enquanto as urnas da zona 119 estavam sendo lacradas pelos
mesários. A secretária da seção estava preenchendo a ata, os mesários ,
verificando o caderno de votação e contando os ausentes e os presentes e o
segundo secretário ajudava o presidente a desligar toda a parafernália de fios
e equipamentos eletrônicos adjacentes à
urna.
“ Não vi mais o Esperanto”, disseram-me seus colegas de
bairro. Já os da primeira parte do bar encostavam seus cotovelos suados no
balcão, enquanto os da segunda, num silêncio de morte, de alguma forma silente
tentavam ocultar o paradeiro do “menino da esperança.” Os olhos dos bêbados
passearam por sobre minha luz de perturbação, e me lembrei que um dia também minha
avó me disse que sonhar com dentes significa desgraça.
A apuração começou. Os gafanhotos, como na expectativa de se
organizar para brincar numa cama elástica, estavam apreensivos. Procurei-o por
toda a Vila Esperança e os lugares aos quais freqüentava me acenavam com um
gesto de ubiqüidade.
“Acabou de sair daqui”, disse-me
um de seus vizinhos. Voto a voto, o futuro da republiqueta de gafanhotos ia
sendo traçado num sufrágio universal consagrado mais pela esperança de sessenta
por cento de um povo humilde e vencedor da comunidade que pelo poder pecuniário
de um partido vermelho – embora o Esperanto seja daltônico. A oposição, que
durante todo o processo anterior se abstinha numa
ciranda-cirandinha-vamos-todos-cirandar-de-atrapalhação, criava expectativas até
nunca vista na terra do Cruzeiro Quinhentista.
Vi um último rastro do Esperanto.
Como se arrastasse ensaguentado pela neve, vi a trilha claudicante e o cheiro
exangue de seu desaparecimento sumir na imensidão do horizonte enquanto todo o
povo da Vila Esperança gritava : “Ele não morreu, ficou encantado!”.
Caminhei até o ponto final.
Desisti de procurá-lo. Não vi o resultado da apuração, mas vi uma lágrima
surgir de súbito à minha frente, cavucando a terra com uma potência ciclônica :
era o Esperanto, em outra existência, inconformado com o resultado das urnas!
Um Esperanto sempre volta!
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