Breve delírio lítero-onírico-nihilista pós apocalipse-new-descontrutivista.
A velha canoa de madeira carcomida deslizava suavemente ao sabor da corrente... As águas verde-escuras, grossas, profundas do rio silencioso pareciam nem se mover, mas levavam a pequena canoa lenta e inexoravelmente na direção de Sabe-se Lá!
Sentada no fundo da canoa – já fazendo água – a mulher parecia estar ali desde o início dos tempos... Tão eternizada na sua finitude quanto possamos imaginar em relação a um ser humano... Velha, além da nossa capacidade de determinar-lhe uma idade.
Os cabelos de cor indefinível, desgrenhados, emolduravam um rosto esquelético, inexpressivo, onde chamavam a atenção os grandes olhos esbugalhados, como em terror por algo que jamais saberemos... Mas era só a magreza que os faziam tão grandes e saltados... Grandes olhos impenetráveis, sem brilho... Sem chama de vida!
Nos seus braços finos e frágeis repousa um bebê de enorme cabeça – como parecem ser todos os bebês subnutridos – todo largado como um pequeno Menino Jesus na manjedoura... Parece estar numa espécie de torpor, num sono profundo, talvez já morto. O peito seco da velha mulher, curtido pelo sol e pela vida, está exposto, ao alcance da boca do pequerrucho, mas parece não ter leite há muito tempo...
De repente, no grande silêncio, percebemos o som de uma canção conhecida... Uma velha canção de ninar que parece vir da mulher na canoa, embora não se possa perceber nenhum movimento dos seus lábios ressequidos... O som parece vir de dentro dela!
Uma voz estranhamente roufenha, mas ao mesmo tempo terna e doce... E, profundamente triste!
- “Serra serra, serrador. Serra o papo do vovô. Quantas tábuas já serrou?”... e descendo o rio embalada pelo som suave da marolinhas que bolem com a vegetação das margens, a canção vai se repetindo como um mantra...
Toda a cena, um tanto surrealista e tocante, parece passar totalmente despercebida pelos dois guarás vermelhos, que exibem suas plumagens encarnadas e brilhantes, orgulhosamente (quase prepotentes!), sob o sol que desponta, já muito quente, iluminando tudo. Os guarás tagarelam animadamente enquanto a canoa desliza sob a ponte onde estão empoleirados, alheios a tudo...
- Ah....Hoje eu estou voltado para as artes literárias, diz um deles.
- Não me diga! (rindo) E eu que nem sabia que guarás falavam! (ri mais!) Quem dirá interessar-se por literatura!?
- Não seja tolo! Aqui em Terras de Alices pode tudo. Coelho fala. Gato fala. E muitas outras coisas que você nem sonharia! Tome tenência, meu caro! (traindo as influência nordestínicas de suas origens!) E lembre-se que ser um símbolo nos dá regalias!
-É verdade!!! É vero! Mas diga-me lá, nobre colega... De que literatices falavas?
- Drummond! Ah...Drummond! Carioca arretado esse poetasso!! (caindo em si) Humn...Quero dizer: Grande carioca esse inspirado poeta!
-É... Da hora! Poeta maior... Eu acho. Mas, diga lá... Declame algo dele para que nos deleitemos!
-Bem...- replicou o guará literato sacudindo a plumagem, depois de um pigarro–
Você sabe... Assim, mesmo, decorado tudinho eu não sei... Eu gosto de recriar, entende? Tipo “baseado em”, sabe como é? Serve adaptação?
-Claro, que serve! Sou todo orelhas! Manda ver!
E o guará, empostando a voz e estufando o peito, declamou, seguido aos poucos pelo outro que acabou se lembrando do poema em questão (fácil, né?):
-“ E agora, Jose? E agora, João? E agora, Geraldo? E agora, Tião?
E agora, Mané? Você marcha, José? E agora, Povão? Pra onde, José?
E agora, Cubatão?
A festa acabou,
a luz apagou?
o povo sumiu?
a noite esfriou?
a luz apagou?
o povo sumiu?
a noite esfriou?
E agora, meu Deus?
........................................................................Sei lá, Deus!
E a velha canoa com a mulher esquelética e o bebê aparentemente morto passam silenciosamente, ignoradamente, insignificantemente em direção a Sabe-se Lá... “Serra serra, serrador. Serra o papo do vovô.... lá-lá-la...lááá´´a, lá...... la´lálálálálá lá......
Engraçado....lembrei de outra canção antiga que nos ensinou a Professora Vasti, ainda no ginásio, no velho Affonso Schmidt:
“ Certa vez de montaria eu descia o Paraná, e o caboclo que remava não parava de falá.... Ahhh...ahhhhhh...que caboclo faladô!”
He he he
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