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quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

UM CONTO, NO ANACOLUTO

Rua Saliéri nº345


Bebeu a muque um café preto e requentado. Saiu da mesa ainda roendo um naco de torrada. Benzeu-se três vezes como era de costume, e apressando o passo entrou no velho Ford.
Estava atrasado e a chuva persistia já pelo quarto dia. O motor do bruto teimava em não pegar, relutou, relutou, mas no final saiu meio a contragosto atirando pelo escapamento e  batendo bielas. Em poucos minutos chegou ao destino.

A calha quebrada desaguava uma ducha exatamente na entrada daquele chalé. O homem desviou-se dela com certa destreza e ganhou a pequena varanda.
Era Saviano, o eletricista. Um lindo buquê de magnólias delicadamente arrumado nevava um pequeno vaso que tinha o formato de um coração. Saviano não era bom conhecedor de flores, mas para ser agradável teceu elogios ao arranjo confundindo-o com rosas brancas.
Terminado o serviço, a velhota taciturna que o atendera, pagou-o em dinheiro vivo e aproveitou a ocasião para corrigi-lo:

-Não são rosas brancas, são flores de magnólia.

O rapaz esboçou um sorriso amarelo e mal pegara suas ferramentas, uma linda jovem entrou subitamente em cena. O ambiente turvo parecia agora mais claro, como se uma luz especial ali descesse.

- Titia, ofereça-lhe um cafezinho. Disse a moça com voz doce e sotaque sulista.
- Não se preocupe, não quero incomodar...
- Não incomoda! Insistiu ela.

Tinha a tez alva e sedosa como aquelas magnólias. Os olhos eram duas contas de um cristal azulado e penetrante. Tinha um jeito suave no andar. No todo parecia ter a fragilidade de um orvalho, mas demonstrava personalidade e convicção em suas idéias e palavras. Foi a coisa mais linda e interessante que o rapaz conhecera em toda a sua existência. Ele a  observava discretamente enquanto sorvia o café acompanhado pelas duas e por um silêncio perturbador para ele, que durou até o último gole. Depois agradeceu e retirou-se. Na saída, meio espavorido que estava nem teve tempo de desviar-se do transbordo da calha. Tomou  um tremendo banho. Sorrindo, e em três longos  passos ganhou o portão, tomou a sua caminhonete e desapareceu em meio ao tremedal.

Naquela noite, Saviano com certeza decretara folga aos gênios do sono. Não quis dormir. Amanheceu acordado à luz do abajur sonhando com a moça da Saliéri nº345. Precisava vê-la. O seu coração depois de muito tempo voltara a ficar inquieto, muito inquieto. Para isso mudou até de freguesia passando a frequentar uma panificadora que ficava na esquina da Saliéri com a Bastos Silva. Com esse pretexto passava todo o santo dia várias vezes ao dia em frente àquele número. Discretamente jogava para lá o seu olhar, mas foram  dias frustrantes.
Numa tarde, porém, topou com ela, não acreditava no que via. Ela carregava  uns papéis  e os protegia com os braços em cruz. Ela o reconheceu de  pronto e deixou escapar um tímido sorriso

- Lembra de mim? Perguntou Saviano exultante.
         - Claro! Você é aquele que elogiou as minhas rosas, que não eram rosas..  não é? Sorriu...
- Sim! foi, que vergonha... mas deviam também mandar consertar aquela calha! Sorriu!
- Você é quem se distraiu! Não foi?

Sorriram desabridamente...

- Posso vê-la novamente? Perguntou ele  ansioso.
- Mas você já está me vendo!
- Sei... você me entendeu né? Sorriu ele.
- Sim, entendi, também gostaria, embora possa ser  uma loucura!
- Que loucura?
- Meu tio Lindenberg...

A moça chamava-se, Anita e acabara de completar 20 anos. Vivia com os tios.
Loucura ou não, passaram a se encontrar às escondidas.
E foram  breves encontros, porém, intensos e cheios de ternura.
Mas as ausências da jovem Anita logo foram notadas. E não passou uma semana para que numa tarde um homem alto e forte, cultivando um  bigode do tipo; Nietzsche os surpreendesse. O homem bramiu com palavras ásperas e ameaçadoras, tanto, que o franzino rapaz logo se viu por terra! Aquele homem mal encarado e com olhos sanguíneos, era a loucura... a qual se referiu  Anita. A moça calada e cabisbaixa seguiu para casa sem ao menos ter a chance de olhar para trás.
No dia seguinte o pobre Saviano ainda sob os efeitos da surra moral que levara, desabafou com um amigo. - A melhor coisa, é não se meter com esses tipos. Disse o amigo. Mas como conselho é fácil para quem não vive o drama, o rapaz fez-se de mouco e saiu ignorando o tal amigo. Tomou o Lapa-centro e passou a  vadiar pela capital.

Uma lua cheia, lua que recentemente recebera a chancela de Armstrong e Aldrin, deixava a noite clara e ainda romântica, ao contrário do que diziam alguns refratários à ciência espacial.
A cidade  era um imenso painel de reclames. Cada néon apelava com seus formatos, apagando e acendendo em cores. Um deles norteou o caminho de Saviano. Era pequeno e dizia em tons alaranjados: “Boate Vera’s”.
Entrou e pediu um Martini com gelo. Do outro lado do balcão lindas jovens conversavam. O  rapaz ainda  trespassado pelo acontecido não enxergava ninguém  a não ser a bela Anita. Uma das moças chamou-lhe a atenção.

- Anita! Gritou ele.

Correu ao seu encontro, estava alucinado. Mas a única coisa parecida entre elas era o branco dos olhos. Pagou a conta e saiu envergonhado num galope.
Ganhando a rua não fez outra coisa a não ser se auto-punir. Afinal, se gostava realmente de Anita, por que não encarar aquele brutamonte, aquele bronco?  Resmungou.
Na manhã de segunda-feira quando se preparava para sair, um menino de recados apareceu na oficina. Trazia um bilhete endereçado a Saviano. O bilhete era esclarecedor, mas o deixou ainda mais triste além de  preocupado.

Sei que quando abrires esta, já estarei bem longe daqui. Na verdade fazemos parte de um       movimento contra-revolucionário. Nossa célula foi descoberta, tivemos que debandar.
Quero também dizer que te amo muito, e já estou com saudades de ti, sinto tua falta guri.
Espero um dia possamos nos encontrar, não numa trincheira, mas num país livre, quem sabe  num banco de praça,  colhendo flores...
Desculpe pelo meu tio, agora tu  podes entender  que ele tinha lá suas razões.
Depois de ler, por favor, queime este..
Beijos e fica em paz.”
Anita.

E o fato se confirmou. Os jornais matutinos davam em destaque o estouro de mais um “aparelho comunista”, assim eles o chamavam. Este, na Rua Saliéri nº345. A batida acontecera de madrugada. Dizia o comandante da operação que os elementos não haviam sido encontrados, pois se evadiram horas antes, mas farto material subversivo havia sido encontrado ... E fechava a declaração prometendo  capturá-los em brevíssimo tempo.
Saviano  passou aquele dia encolhido em si e de certa forma escondido, mal trabalhara. Agora se preocupava com Anita e consigo próprio, afinal, poderia estar sem querer envolvido em assunto tão delicado e perigoso. Havia militares por todo lado e os a paisanos eram os piores. O rapaz não podia  vacilar.
Durante três dias procurou não se expor, mas precisava passar por lá nem que fosse pela última vez. Encasquetou o rapaz.
Era feriado nacional. As ruas estavam quase desertas, mas  no centro cívico aconteciam as paradas militares e  as escolas eram obrigadas a participar do evento. Crianças ainda  mal acordadas se dirigiam logo cedo ao centro da cidade. Bicicletas e alguns automóveis desfilavam enfeitados de verde e amarelo.
Por enquanto a única ameaça iminente era o céu carregado de nuvens chumbadas. Saviano tomou um guarda-chuva e rumou para lá munido de muita prudência. Afinal não queria ter o desgosto de ser surpreendido, pois,  poderiam ainda estar rondando por  lá como chacais famintos.
Quando entrou na Saliéri, a chuva desabou como anunciada. Isso deixou o rapaz menos tenso, pois um guarda-chuva aberto disfarçava naturalmente.
A única imagem da casa que lhe trouxe algo de bom foi a calha que ainda transbordava. Ele até esboçou um sorriso, mas o resto era desolador. Telhas arrancadas, portas arrombadas, vidraças quebradas, o jardim amarrotado, era esta a cena. E ele foi observando disfarçadamente a tudo isso sem parar de andar. Mas parou. Parou quando viu aquele mesmo vaso em forma de coração. Estava quebrado e enterrado no barro. Mas o coração do rapaz a essa altura com certeza estava muito mais estilhaçado e pisoteado. Sentiu  um vácuo em sua alma, e a intangibilidade de seu corpo...
Continuou a caminhar descendo a ladeira. Olhava fixo para o horizonte, parecia louco, seus olhos estavam hirtos, sanguíneos, ardentes. Sentia-se tão impotente e desprezível quanto o lixo que a enxurrada arrastava ladeira abaixo. De súbito, algo na sarjeta lhe chamou a atenção. Havia uma flor de magnólia enroscado  na grade do bueiro que parecia lutar ferozmente para não ser levada de roldão... Saviano estancou seus passos  de autômato e  agachando-se, tomou-a em suas mãos acariciando-a...
Nesse mesmo instante no outro lado da cidade, sua doce Anita era conduzida ao (Departamento de ordem  política e social).  DOPS.


Conto de José Alberto Lopes®
SBC. 2010

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