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quinta-feira, 24 de novembro de 2011

EX-PRESIDENTE DO MADECA DESCREVE O CAOS NOS PRECATÓRIOS EM SÃO PAULO

A revista Ética – Pensar a Vida e Viver o Pensamento publicou artigo redigido pelo advogado Ricardo Luiz Marçal Ferreira, ex-presidente do Madeca (Movimento dos Advogados em Defesa dos Credores Alimentares). O especialista descreve a situação dos precatórios no Brasil, tomando como exemplo o Estado e município de São Paulo. Diante de tanto descaso por parte do poder público, Ricardo Ferreira espera poder deixar aos filhos “um Estado que, se por desvio ou acidente, lesá-los, terá de reparar o dano, durante a vida deles, e dentro de um prazo razoável”. Leia a íntegra do artigo. Ética – Pensar a Vida e Viver o Pensamento Precatórios alimentares e o monstro estatal Por Ricardo Luiz Marçal Ferreira Os mais pessimistas não ousariam prever quadro tão sombrio quanto ao que hoje assistimos, na esfera do Estado, relativo ao pagamento das dívidas judiciais. Precatórios, como se sabe, são uma espécie de título judicial para quem ganha uma ação contra o Estado que implique um crédito. Tal atraso gera uma situação calamitosa de déficit de cidadania, que ilustra com clareza radical a distorção com que o poder público atua. O estado mais rico da federação – São Paulo – devia até o final do ano passado simplesmente 13 orçamentos integrais de precatórios alimentares (de 1999 a 2010). Dito de forma radical: os débitos judiciais que ostentam natureza relacionada à subsistência dos credores (dívidas salariais, indenizações reconhecidas a acidentados) não são adimplidos há mais de uma década. O grotesco cenário repete-se em outros estados, em outras prefeituras, como a de São Paulo, cujo porte da inadimplência não fica atrás do estado em que se acha inserta. Com o advento do Plano Real – que em breve completará 20 anos – desnudou-se a impudicícia da inadimplência das obrigações judiciais pecuniárias que oneram o poder público. Acostumadas a fazer dispêndios no exercício subsequente ao da requisição (o que lhes garante no mínimo 18 meses de folga), as entidades devedoras, tradicionalmente, refestelavam-se pagando aos credores valores históricos írritos, corroídos pela sangria inflacionária. Contudo, com a relativa estabilidade da moeda que vinga desde meados de 1994, o pagamento, meses depois da apresentação da requisição, deixou de ser simbólico, passou a ter significância e representatividade, e bem por isso – dentro da lógica estatal – deixou de ser feito, donde o lamentável passivo acumulado. Após quase dez anos de calmaria inflacionária, o problema, habitualmente ocultado e não enfrentado, não só persiste como se tornou agudo. As dívidas judiciais alimentares que oneram o poder público estadual e o municipal e se encontram em situação de alarmante esquecimento são fruto (e a Constituição que o diz, no artigo 100, primeiro parágrafo) de indenizações decorrentes de responsabilidade civil e de reparações a servidores públicos (no termo incluímos os aposentados e pensionistas). A natureza alimentar advém, portanto, da índole básica do direito que se volta, prima facie, à garantia de manutenção e sustentabilidade humanas. Poder-se-ia, aqui, enfatizar o absurdo e renitente descumprimento da Constituição Federal, manifestado não apenas pela ofensa do seu artigo 100, mas também de normas estruturais que asseguram a eficácia da coisa julgada e, em última análise, a independência e harmonia entre os poderes (leia-se: Estado deve cumprir também o que o Judiciário decidir) ou também a necessidade de urgente alteração da Constituição para o fim de garantir punição eficaz contra tais absurdos (por exemplo, extinção do sistema de precatórios ou reformulação do instituto da intervenção federal). O que, aliás, foi feito de forma grotesca por uma emenda constitucional – de número 62/09 – que instituiu a terceira moratória sucessiva para pagamento das dívidas judiciais, isso num espaço de 20 anos, dando, grosso modo, a partir de sua promulgação, mais 15 anos para os devedores públicos pagarem para os cidadãos o que a Justiça lhe reconheceu. Mas não é discussão centrada no direito que aqui alvitramos. O que pretendemos, por ora, é mostrar como a atuação do Estado conduz à nulificação e ao esvaziamento de algo que, eles próprios, ao menos publicamente, dizem pretender criar ou já terem criado: um Estado eficiente, transparente, justo e, acima de tudo, organizado financeiramente. Capaz de grandes empreendimentos ou de grandes aventuras, como sediar eventos mundiais esportivos. Ouse já: em que pese o desempenho do Estado brasileiro na modalidade cidadania ser pífio, arvora-se potência para promover o supérfluo. Há anos vimos vivendo – ao menos teoricamente – sob os auspícios (para muitos sob o infortúnio) do ideário monetarista, uma vertente do liberalismo, o qual prega rígido controle de emissão de moeda aliado a uma política de controle de déficits públicos (na prática, contenção de gastos públicos para compensar o que se gasta com o pagamento de juros). Esse sistema vem sendo mantido com mão de ferro pelo governo federal e tem inspirado as condutas estaduais e municipais. Vivemos – não há como negar – sob um “Estado de Economia”, e, apenas em plano secundário, num Estado de Direito. Tal culto tem fundamentado uma conduta (ou desculpa) central do poder público: o direito dos administrados vai até onde o caixa permite que vá. E quem manipula o caixa é o Estado, do jeito que lhe convém. A raiz da inadimplência e, portanto, a razão das sucessivas reformas, concessivas de prazos e mais prazos para cumprimento das decisões judiciais, reside num mesmo escapismo, que, se num instante nos fosse possível humanizar a figura estatal, numa cisão esquizofrênica. Esse escapismo emergiria como ocultação da realidade (a dívida judicial), eleição de desculpas que se um dia tiveram pertinência há muito já não têm (a falta de recursos), e a opção por dispêndios que, em termos éticos e constitucionais, seriam de estatura muito inferior. Assim, o cumprimento das decisões judiciais, corolário do princípio da separação dos poderes e, portanto, da democracia, acaba sendo alocado como uma questão de mero dispêndio financeiro, dispêndio como outro qualquer. Há o gasto com transportes, com energia elétrica, com o acatamento das decisões judiciais... Noutras palavras, passam a disputar com gastos em investimentos (construção de pontes, ampliação do metrô), para lograr atendimento, como se fossem gêneros da mesma espécie, quando à evidência não são: a Justiça é um valor, um elemento essencial da democracia; como valor não tem fim, vale por si; uma ponte, abstrata e materialmente considerada, é sempre meio: uma ligação de um ponto a outro. A admissão da tese de que o Estado possa, em nome de seus interesses econômicos, furtar-se ao que a lei prega é, para o ideário liberal, o qual o nosso Estado sob o influxo da globalização se viu obrigado a absorver e professar, uma heresia incomensurável. Por essa razão – e também para passar a ideia de que vem seguindo à risca a cartilha monetarista – é que habitualmente o Estado sempre escondeu o passivo das dívidas judiciais de todas as demonstrações econômicas que divulga, máxime quando visam captação de recursos externos (essa parte da dívida pública é não declarada). Em circunstâncias extremas (casos de guerras, calamidades naturais e graves convulsões sociais), compreende-se – desde que haja toda a transparência necessária – tal supressão de direitos, mas num estado de normalidade institucional, e até de ufanismo e triunfo econômico, afigura-se ela inadmissível. Vivemos, salvo engano, num regime democrático em curso. E, do ângulo econômico, os fatos parecem não corroborar a suposta e propalada miséria fiscal em que os entes devedores dizem estar para justificar pagamentos tão incipientes e modestos das dívidas judiciais alimentares vencidas, ao longo de décadas. Ora, a todo instante assiste-se à publicidade dos governos estadual e municipal feita não para alardear campanhas institucionais de interesse público, mas, unicamente, destinada a apregoar os méritos pessoais do governante ou do partido a que pertence. No plano estadual, ademais, divulga-se a realização passada ou futura de obras públicas, prevendo-se, inclusive, a utilização de cerca de tantos e tantos bilhões de reais, em investimentos, até o final das gestões. Foi assim no passado e continua moeda corrente hoje em dia. A questão da pendência dos precatórios alimentares mostra bem como o Estado brasileiro – aqui representado exemplificativamente pelo estado e pela prefeitura de São Paulo – acaba por desvirtuar institutos e credos. Coloca-se como democrata na esfera política, liberal, na econômica, e eficiente na social. Diz adotar mecanismos jurídicos legitimados, econômicos liberais e sociais participativos, mas, na verdade, no que lhe diz respeito, é um contumaz descumpridor da lei. Gunnar Myrdal – laureado com o Nobel de Economia – aponta que uma sociedade frouxa, subdesenvolvida (o que ele chama de soft societies) – e, por consequência, um Estado frouxo – caracteriza-se por três aspectos básicos: escapismo (ocultação de suas mazelas), antidarwinismo (preconceito à concorrência livre) e anticontratualismo (renitente descumprimento de leis e contratos). Os governos inadimplentes amoldam-se à risco aos conceitos citados. São antidarwinistas, por essência, porque ao se colocarem, de modo participativo, numa disputa (aqui judicial), furtam-se aos efeitos constitucionais e legais que dela decorrem quando saem derrotados. São escapistas porque, durante anos, no lugar de dar um tratamento sério à questão em tela, tiveram e ainda têm verdadeira urticária quando o assunto veio ou vem à tona, fugindo de qualquer compromisso (ainda que de longo prazo) com os credores, ocultando, em demonstrações externas, a existência desse passivo. São anticontratualistas porque descumprem as leis, negando direitos que depois são reconhecidos pela Justiça. A tais atributos desabonadores poderíamos claramente acrescentar mais um, que causa particular revolta e indignação aos credores alimentares do poder público: a ambiguidade. O governo, enquanto credor, é de uma ferocidade e eficiência ímpares, um predador tão eficiente como uma águia norte-americana. Já quando deve, age como um bicho-preguiça amazônico: é difícil de encontrar, é de uma lentidão exasperante, mas, sabiamente, quando dá as caras mantém uma irônica e simpática cordialidade. Ora, como esperar a criação de uma sociedade justa e equilibrada se o seu próprio promotor é um ser cambiante e não confiável, que parece ser portador de grave e patológica cisão (jurídico quando cobra, injurídico quando deve; democrata quando cobra – vale-se do Judiciário; despótico quando deve – repudia o Judiciário)? Por lógica, ou o Estado se endireita, passando a ser tão bom devedor como é cobrador (é isso que o ideário liberal, que professa, apregoa(, ou aplica o pai-nosso à economia (Dimite, Domine, debitoribus nostris – Perdoe, Senhor, os nossos débitos, assim como nós perdoamos nossos devedores...), institucionalizando e legitimando, de vez – não só para si, mas para todos – a cultura do calote. Vale frisar, para desfazer certos conceitos errôneos, que qualquer empresa de grande porte, bem gerida, mantém a previsão de gastos estimados com indenizações, mormente trabalhistas. Ora, o Estado, pelo seu gigantismo, e também pela histórica relutância de acatar certos direitos de seus servidores, pacificamente reconhecidos pela Justiça, ou de prontamente indenizar de modo justo (e não oportunista) quem lesa, tem compreensivelmente um passivo, digamos assim, trabalhista e indenizatório, em aberto. Tais entes parecem ter verdadeira aversão a reconhecer um fato notório: o de que sempre serão demandados judicialmente e, portanto, o de que cronicamente terão dívidas judiciais, tendo de pagá-las. A falta de enfrentamento do passivo atual de dívidas judiciais alimentares (financeiramente, menos nocivo do que outros, porque os juros que se pagam aos credores são risíveis) recrudesce a problemática que se almeja evitar, de endividamento. Parece claro, pelo emprego de banal psicologia, que se os poderes públicos devedores lidassem com a questão com a mesma vontade política que têm para com outros temas mais eleitoreiros, os reflexos para a sociedade seriam imensamente benéficos. O pagamento dessa dívida, mesmo que escalonado, dentro da capacidade econômica máxima (e não fictícia) dos entes devedores, levaria o Estado a evitar o seu reaparecimento futuro, estimulando-o a investir mais em ações preventivas (ser mais ético e melhor cumpridor da lei) e menos na manutenção (ou eternização) de ações judiciais contra si aforadas que, de antemão, sabe que perderá. A economia para o cidadão seria imensa: gastar-se-ia menos para manter o monstruoso arsenal de demandas judiciais fundadas em que o Estado é réu e a Justiça ver-se-ia poupada da quase que desumana tarefa de julgar e analisar milhares de feitos para depois vê-los mofar aguardando pagamento... Não representa resposta minimamente adequada para o quadro terrível que se aponta a promulgação da emenda constitucional 62/09. Ato que pretendeu botar ordem na casa, instituindo um regime anômalo de pagamentos, uma nova moratória. Depois de mais de 10 anos de atraso, a concessão de mais uma década e meia para solução da dívida, com previsão de leilão com deságio em caso de inadimplência e valores-limites para pagamento da dívida mais agilmente para idosos (uma espécie de bolsa-família aplicada aos precatórios) fala por si. Pura atrocidade a esta altura. A tornar tudo mais bizarro do que já é. Mas a coisa não para por aí. A inadimplência do poder público levou curiosamente ao aparecimento de um mercado. Mercado de precatórios! Grupos de investidores lançaram-se num novo negócio. Acessam impiedosamente os credores judiciais, muitos dos quais jumildes e idosos – inermes, portanto –, oferecendo cerca de 20% do valor de seus créditos judiciais. É realmente incrível que a inadimplência do Estado tenha criado um novo negócio – e dos bons – para quem detém o capital. Espoliar os órfãos da Justiça, oferecendo-lhes uma gentil troca de tristezas: a dos descaso estatal pelo ruinoso negócio. Razão, quem sabe, para Marx, para quem o Estado não passa de um tentáculo da burguesia. Só que nem ele, certamente, ousaria pensar num decaimento tão grotesco da função simbólica da “Justiça” (aqui entendida em concepção ampla – entroncamento entre poderes) como agente superestrututal. Ela nem menos se presta a ocultar a dominação. Ela própria cria bases e terreno fértil explícito para sua promoção. E aí logicamente não podemos nos furtar a sublinhar que o problema apontado não repousa única e exclusivamente nos executivos recalcitrantes e evasivos. Se eles se refestelaram na própria imaturidade, orientando-se, sempre que possível, para uma clausura narcísica invencível, é porque a pedagogia que se lhes deu foi permissiva. E isso em da Justiça – ou melhor do seu braço prático: o Judiciário, principalmente da Suprema Corte que, seja absorvendo o discurso escapista e alarmista (não há dinheiro, e pode faltar para pagar aos próprios servidores, um dia aos próprios juízes...), seja retardando julgamentos cruciais (como da análise da segunda moratória constitucional – a instituída pela emenda constitucional 30/00, que no estado de São Paulo permitiu a quase quitação da desapropriação do parque Villa-Lobos, ao passo que mais de 50 mil credores alimentares morreram sem receber seus créditos), permitiu, e contribuiu, para o descalabro a que chegamos. Mas se o escapismo – do Executivos e do Judiciário – é a tônica, a compulsão por assuntos estéreis também, a gerar distração em vez de concentração. Subversão comum: o menos importante assumo prevalência. Por exemplo, há pouco tempo circulou, nos meios jurídicos, grande discussão sobre ser excessivo o prazo em quádruplo para o poder público contestar ações contra si aforadas. Estamos falando de menos de 45 dias a mais, quando o atraso no cumprimento das decisões judiciais que implicam condenação penuniária do Estado ultrapassa, para a maiorias das entidades devedoras, uma década. Esse desapreço à fatuidade – uma espécie de negação do princípio da realidade, usando uma expressão freudiana – tem conexão direta com certo tipo de estrutura muito comum nos meios jurídicos, que redunda nas seguintes condutas: apreço por detalhes, com a consequente criação de estruturas burocrático-formais sobrepostas, que têm valia às vezes inversamente proporcional ao destaque e à projeção logrados pelos seus idealizadores, subversão dos reais fins a que se destinam, e irradiação de um certo tipo de saber calcado em slogans formais, cerrados num mundo à parte, mantidos hermeticamente, alijando o resto da coletividade de compartilhamento. Os procedimentos judiciários que deveriam servir de meio apto, plástico e funcional para a consecução do fim que visa (a ágil obtenção do direito ao jurisdicionado) convertem-se em fins em si mesmos. Passam a servir tanto como meio de ocultação de incompetência judiciária (seja pessoal, seja sistêmica), que fica nublada no caos burocrático, quando como fundamento para o encarecimento da advocacia – afinal quanto mais inflada a ritualística maior a justificativa para cobrar mais. Aqui talvez Freud, uma vez mais: no lugar de a libido tender ao objeto (a atividade de jurisdicional, e nela inserida a advocatícia, voltar-se para seu fim) fica encarcerada dentro do ser (dos lindes jurídicos), numa atividade meio alucinatória. Muito dispêndio de energia, sem resultado prático algum. Apenas enaltecimentos próprios. Essa dispersão certamente contribui para o enfraquecimento do Judiciário, tornando mais viável o escapismo dos devedores públicos. Não é a à toa, que, em certa ocasião, ouvi de um ministro do Supremo Tribunal Federal algo assim: O Judiciário tem de tomar cuidado com certos excessos (ele aludia ao corporativismo, modalidade da sua concentração antes descrita), se não a sua utilidade pode ficar comprometida. Rasgo de lucidez. Que, dito há muitos anos, vai se infiltrando. Prova disso? As lides que envolvem grandes interesses econômicos raramente vão para o Judiciário, cada vez mais eleito como muro de lamentações apenas dos desvalidos, ou ritual de passagem quando, por lei, necessariamente as partes têm de a ele recorrer. O Judiciário, reduto de modernidade, num mundo negocial pós-moderno, não atende mais. E como é a lógica do capital que dá as cartas (a ideologia triunfante dos nossos tempos, talvez a única, em que pesem seus muitos disfarces –, eficiência, boa gestão, ecologia...), esperam-se, dada a falta de interesse das grandes corporações, investimentos decrescentes no Judiciário (nesse sentido, revela-se emblemática a difícil situação orçamentária dos Tribunais, mormente a quem vem passando o de São Paulo), sempre bem mascarados e disfarçados, afinal alguma válvula de escape que finja escoar a enorme pressão social de nossos tempos há de existir, ou, ao menos, parecer que existe. Mas quem pensa que o entulho aqui exposto está bem coberto pelo tapete florido da prosperidade, do crescimento econômico, da consecução de metas de arrecadação, da proteção da fauna e da flora se esquece, certamente, que esse Estado disforme produz uma contraface escondida. E o oculto sempre retorna sob a forma de destino, infiltrando-se na sociedade quer se queira quer não. A consciência coletiva não pode, a certa altura, deixar de se apropriar dos efeitos nocivos de tanta negação, de tanta injustiça. Isso volta sob diferentes formas. Decerto não são nem serão agradáveis. Se difícil é deter coletivamente a marcha dos fatos aqui narrados, a única possibilidade que temos – possibilidade a ser trabalhada individualmente – é pensar diferente, não aderir aos lugares-comuns e confortáveis de nossos redutos construídos ou de nossos feudos materiais, refletir sobre os nossos próprios atos e tentar colocar em debate a participação que temos como coadjuvantes – conscientes ou inconscientes – de tais fenômenos. Cairia bem a fórmula sugerida por André Comte-Sponville: “Na ordem prática, política ou ética, esperar um pouco menos e agir um pouco mais”. Ou fazer valer a tão singela quanto difícil fala da personagem Isaac, interpretada por Woody Allen, no filme Manhattan, quando confronta seu amigo a respeito de uma traição sofrida (e é de traição que estamos tratando, em última análise, aqui, não nos enganemos): Isaac: Mas é generoso demais com você mesmo. Não percebe? Você racionaliza tudo. Não é honesto com você mesmo. Diz que quer escrever um livro mas prefere comprar um Porsche. Você trai Emily e mente para mim... e logo estará diante de um comitê do Senado denunciando golpes, dedurando seus amigos! Amigo: Você é tão arrogante. Somos apenas pessoas! Somos apenas seres humanos! Você acha que é Deus! Isaac: Eu preciso ter um modelo. Amigo: Não dá para viver desse jeito. É muito perfeito. Isaac: O que as gerações futuras dirão de nós? Um dia seremos como ele (apontando para um esqueleto de laboratório escolar). Ele provavelmente era uma das pessoas bonitas. Talvez ele estivesse dançando e jogando tênis. É isso que vai nos acontecer. É muito importante ter algum tipo de integridade pessoal. Estarei pendurado numa sala de aula um dia e quero ter certeza que serei bem lembrado. Um desejo, e como bom desejo sempre com um viés de impossibilidade? Que através de nossas ações possamos legar para os nossos filhos um Estado com Justiça. Um Estado que, se por desvio ou acidente, lesá-los, terá de reparar o dano, durante a vida deles, e dentro de um prazo razoável. Enfim, um Estado que, se jamais será Deus, tenha ao menos alguma integridade e saúde.

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