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sábado, 17 de dezembro de 2011

UM CONTO PREMIADO, NO ANACOLUTO CUBATÃO

Batuta

O velho Ford partiu levando poucas tralhas.  Enquanto  o motor roncava ganhando  a estrada, nossa casa  ia ficando mirradinha até se resumir numa pequena  mancha branca entre uns arvoredos e sumir. Meus lábios tremeram ensaiando um choro, choro que acabou não vindo.
Foi uma viagem de muitas horas. Somente me lembro  da partida. É que dormi como uma pedra durante a viagem, mas não largava do meu cavalinho de rodinhas que eu batizara com o nome de Batuta.

Pedro de Toledo era a cidade destino, embora a minha mãe a chamasse de “Mato” e ela tinha  razão.
Naquela época, era uma região muito carente de recursos, com a economia da cidade  calcada na bananicultura. Realmente andava-se horas e horas, e até a onde  a vista alcançava só se via um mar verdejante de bananeiras.
Meu pai era funcionário público e para lá fora deslocado em caráter temporário. Foi na época da construção de um trecho da rodovia sul.
Chegamos à noitinha. Um breu.  Muitos vagalumes, mosquitos e poucos moradores. A casa em que ficamos mais parecia com uma oficina mecânica. Sob uma precária luz de carbureto, tropeçava-se em radiadores, baterias, bielas, virabrequins... Minha mãe logo desaprovou tudo. Meu pai ficou quieto.
Mais tarde num fogãozinho a querosene, ela preparava a água para o café e o leite para o mingau, enquanto meu pai saía para comprar pão numa vendinha que havia perto do pátio das máquinas.
Era muito estranho deixar nossa casa lá em Cubatão com certo conforto, e embrenharmos naquele lugar onde não havia eletricidade, esgoto e água encanada. Mas para ser honesto, uma ou duas casas  eram sim servidas por água encanada. Era curioso, engenhoso, mas pouco efetivo. A água vinha lá da serra e era conduzida por calhas feitas de bambus, que rachados pelo sol, mais gotejavam que conduziam o precioso líquido. A nossa água vinha mesmo era de um velho poço que havia no quintal, e banho a gente tomava literalmente  de cuia.
Ao contrário do que se imaginava, à noite aquele mato era mais barulhento do que a minha cidade. As corujas piavam a noite toda, os morcegos  em voos rasantes sibilavam pra todo lado. O cricrilar era intenso e a sapaiada batendo papo na beira da lagoa, completava a farra.
Meu irmão mais novo não desgrudava ,do vestido de minha mãe, e eu não desgrudava do meu Batuta, o meu amigo de todas as horas, de todos os dias. Aliás, meu irmão possuía também um cavalinho de rodas igual ao meu, igualzinho. Tanto que fiz uma pequena marca em Batuta, para não haver confusão. Mas meu irmão não ligava muito para o seu brinquedo, que ficava guardado numa caixa de sapatos.

Os dias  que se seguiram foram bem chatos. O Zezinho, meu único vizinho, tinha ido com os pais a uma romaria e meu irmão era muito pequeno para brincar.
Então eu ficava acabrunhado a  manhã toda debruçado na janela olhando para o vazio. Certo dia vi algo que me  chamou muito a atenção. Era um grupo de  japoneses com suas ferramentas indo para a lavoura. O curioso era que algumas mulheres levavam  amarrados às costas  seus filhos pequenos. Andavam em fila indiana e desapareciam  numa baixada que havia.  Pareciam esquimós. Achei aquilo o máximo!

À  noite as lamparinas de óleo se não clareavam a contento, pelo menos diminuíam a escuridão. Era um copo com água com um  dedo de óleo de cozinha onde flutuava a velinha numa cortiça. Essa era a nossa luz de cada noite. E olha que Thomas  Edison  já havia inventado a lâmpada elétrica há muitos anos.
Mas a escuridão tinha lá suas compensações. Lá fora um festival de luzinhas  sobre a várzea. Eram  chusmas de vagalumes alumiando o mato com suas lanternas esmeraldinas. E o céu ficava tão nítido que dava para contar as estrelas. De vez  em quando uma caía. Aí eu fazia um pedido, sempre o mesmo. Voltar para a nossa casa de verdade!

Fazia um pouco de frio naquela manhã. Enfiei  o meu boné e saí  na companhia do meu pai. Fomos até um sítio comprar coisas. Coloquei Batuta debaixo do braço e caminhamos por uma estradinha tortuosa e meio barrenta.
Quando lá chegamos, nos deparamos com um rancho muito pobre. Enquanto meu pai conversava com um homem magérrimo, um par de olhos tristes e profundos sem que eu percebesse, fitavam o meu cavalinho como a devorá-lo. Era o filho do sitiante. Descalço, maltrapilho e o rosto marcado por manchas de verme.
Até aquele momento, eu não tinha a noção do que era a pobreza. Então eu senti algo estranho dentro de mim.  Aquilo realmente mexeu comigo, muito mesmo. Assim, com medo abracei Batuta com força, fugindo daqueles olhos tristes e profundos e correndo para junto do meu pai. Mesmo assim, durante todo o restante do dia e a noite, aquele rosto não saía do meu pensamento.
Nas aulas de catecismo, ensinaram-me, além de outras coisas, a arte da boa ação, e eu não perderia aquela oportunidade por nada. Aquilo era motivo de júbilo para mim.
Apiedado então com a situação daquele menino, resolvi praticá-la, mesmo fazendo cortesia com um chapéu que não me pertencia. Sim, o  cavalinho do meu irmão. Com certeza ninguém notará a falta dele, ninguém!  Pensei...
Foi depois do almoço no dia seguinte que saí resoluto com a minha boa ação debaixo dos braços e muito barro sob os pés.
Lá chegando insisti:
- Pega! Pega, é seu! Você  gostou dele não  é?
- Hum. Resmungou ele.
E subitamente  arrancou-o de minhas mãos e sem dizer mais  nada correu para dentro do rancho. Eu por minha vez  saí correndo para casa, feliz. Feliz  por ter realizado uma boa ação, a maior de todas, pensava comigo.
Mas a minha alegria durou até  a porta de casa. No chão da sala estava o meu irmão brincando com o que supus ser Batuta. Mas não era Batuta, não era não! Fiquei gelado dos pés à cabeça. Eu tremia! Tinha que voltar lá e sem que ninguém soubesse, recuperar o meu cavalinho, mas a chuva que caía me fez adiar o resgate.
Foi uma noite longa, a mais longa das minhas noites quando criança.
Curioso, de repente meu irmão passou a se interessar pelo seu brinquedo. Apegou-se a ele de tal forma que até passou a dormir  com ele. Aquilo foi um saco! Ou um soco! Não dava mais para   fazer uma simples troca, eu teria que levar outra coisa. A bola de borracha! Pensei.
Enfim acordei, melhor, levantei-me com os olhos vermelhos secos e ardentes.
- Beto! Você está com uma cara de sono. Disse mamãe  servindo o meu café.
Eu poderia mentir dizendo que a cama era dura e que  eu estava com medo do escuro, seria uma boa desculpa. Mas permaneci quieto. Se eu ali quisesse chorar, talvez não tivesse nenhuma lágrima.
- Toma logo se não esfria! Insistiu.
E eu continuava  parado, longe dalí. Na realidade o meu coração de criança estava duro de arrependimento e uma escura incerteza pairava sobre tudo.
Assim que mamãe virou as costas, levei a caneca de ágata até  a pia e despejei todo o café com leite. Disfarcei e saí mais uma vez batendo barro  e decidido a trazer Batuta de volta são e salvo de qualquer jeito.
Corria como se fosse acudir o pai na forca. Diria o meu avô. E enquanto  o ar frio da manhã fustigava  o meu rosto eu ia ruminando   a minha ansiedade e o  meu arrependimento.
Quando lá cheguei, encontrei um silêncio arrebatador, um ar de abandono, então gritei um grito meio acanhado, embargado.
- Olá! Oi! Tem gente ai?
Não havia ninguém no rancho. Só umas galinhas e um velho cão para me recepcionar. Olhei para  todos os cantos, mas antes cego fosse. Lá estava sobre um casqueiro  o meu Batuta, o que sobrara dele. Uma parte do corpo, perna, cabeça... Aquilo me machucou profundamente. Olhei só mais uma vez. “Então é assim que se paga pelo bem?” Perguntei-me.
Não sei dizer se sentia mais raiva daquele menino ou de mim mesmo.  Mas os olhos  de vidro de Batuta me fitavam energicamente como que me julgando e condenando pela minha falta de consideração.
Voltei correndo para casa  como um cão escorraçado, com o rabo recolhido e a língua para fora. Durante  boa parte do  caminho o canto triste de um “Peixe-frito” parecia entoar um réquiem para batuta. Aquilo me infernizou o juízo! Já no quintal mal cuidado de nossa casa temporária, avistei mamãe suspendendo com um longo bambu, um improvisado varal. Tentei passar despercebido entre as bandeirolas coloridas de roupas. Mas ela me viu: 
- Onde você andou? Parece uma toupeira  de sujo! Vá tomar seu banho!
Mais uma vez eu poderia mentir, dizendo que subira numa caramboleira ou coisa assim. A verdade, no entanto, me corroia, a verdade me escalpelava, mas permaneci calado só para não dar o  braço a torcer! E ignorei o banho.
Entrei em casa e me atirei na cama. Desatei logo a chorar com a  cara enfiada no travesseiro, as calças cheias de carrapichos e as botas tingidas de barro.
- Ingrato, ingrato, ingrato! Dizia  eu roucamente enquanto na sala ao lado, meu irmão brincava feliz da vida, puxando pelo barbante, o seu cavalinho de rodinhas.


29º Concurso literário Yoshio Takemoto- SP. - Menção Honrosa

Um conto de José Alberto Lopes® - SBC-SP. Maio de 2011
Quase uma Autobiografia do autor.

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